sábado, 7 de março de 2009

Os deuses deviam estar loucos quando fizeram um mundo assim. Um mundo onde toda a gente vê aquilo que quer ver, e não pode ver mais do que aquilo que sabe. E sempre que se sabe que vai voltar a acontecer aquilo que já se sabe, não se quer saber, não se quer ver. Andamos em voltas curtas e compassadas, desenhadas por aqueles que sabem desenhar e que têm lápis melhores que o meu, que nós, talvez…Só porque assim o queremos.
As linhas surgem diante dos nossos pés, como rastos prolongados de passos já marcados e feitos por outros. Basta segui-los, esperar um novo traço ou marcar outro invisivel. Esse novo traço nunca vem só. Nunca vem com a simplicidade solitária de um novo caminho. Esse traço por mais certo e linear que seja, nunca é aquilo que parece. Pede mais de nós. Pede demais dos outros. Mais do que aquilo que poderemos aguentar. Um novo traço não implica só uma nova saída, um novo encontro de eus, uma multiplicação exaustiva de escolhas e caminhos. Apresenta simplesmente mais, significa escolhas e mais escolhas que levam seguramente a algo incerto, mau ou momentaneamente bom. Não sei se plenamente e para sempre bom. Infelizmente, foi o mundo que os deuses fizeram e é assim que ele existe.
As histórias são contadas de cima para baixo, do lado esquerdo para o direito, se as pessoas forem esquerdinas, ou do lado direito para o esquerdo se as pessoas forem destras. Há formas e formas de contar histórias, e eu apenas conto aquilo que vejo, sem ligar à forma. Posso começar no fim e acabar no início e tudo fazer sentido assim. O importante aqui, é que os deuses deviam estar loucos quando fizeram um mundo assim, em que nada realmente tem o significado vulgar, em que ninguém faz o que deve fazer, onde ninguém diz o que realmente sente, onde as nossas linhas surgem imaginárias e temos de adivinhar o que fazer a seguir. Por isso conto a história de como o mundo é, e como os deuses o fizeram, sem quê nem porquê, porque sim. No fundo não há realmente lápis que possam aparecer nas nossas mãos e que nos deixem desenhar. O que desenhamos é transparente e ninguém vê, nem nós vemos, logo não desenhamos, não ditamos o rumo da razão. Não ditamos coisa nenhuma, e ditamos tudo se quisermos. Somos nós presos a lápis melhores do que os nossos, que nos dão as linhas para seguirmos. Assim parece a quem quer dizer de boca cheia que os deuses são os nossos deuses e nós somos a sua criação. O futuro só aos deuses pertence, dizem eles. Desculpas para parecermos todos pessoas inofensivas, pobres coitadas num mundo onde deuses não existem na terra, só no céu.
Um dia os deuses pensaram em criar o mundo. Criaram-no em três dias e meio. Decidiram que no outro meio do último dia iam escrever histórias a começar do meio, do lado esquerdo para o direito do z para o a. Escreveram histórias macabras, com pés na cabeça, e cabeças nos pés e deixaram-nas nas estantes, prateleiras e gavetas das suas próprias casas fechadas a correntes com sete chaves e cadeados pequeninos a ladear tudo. Depois como ainda não era de noite, criaram um homem e uma mulher e deram-lhe vida e história e dois lápis invisíveis para escrever. Depois vieram os outros, vieram aqueles, vieram estes e também estes. Muito depois viemos nós, vim eu, tu, ela e ele, vocês. Os primeiros não passaram a palavra, não se lembraram ou não quiseram, mas nós podemos ser deuses também.

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