domingo, 30 de agosto de 2009

Às vezes quando as coisas correm mal, correm sempre. E depois há um momento em que tudo se reverte, e as coisas ficam bem. Mas nunca consegues viver bem, porque estás sempre à espera que alguma coisa de má aconteça nesse momento. Era sempre o que ela me dizia, por entre uma cigarrilha de cheiros misturados e adocicados. O cheiro que dela brotava fazia-me cócegas no nariz e dava-me vontade de espirrar. O cheiro era a amoras frescas e café acabado de fazer, e fazia-me atirar de cabeça naquela bela eloquência. Havia dias em que ficava só a observá-la como quem observa uma pintura num museu, e os lábios vermelhos dançavam na minha retina, como quem dançava uma valsa de amor. Um dia decidimos que os seus lábios vermelhos dançariam melhor nos meus lábios lisos e subimos um degrau da escadaria do prédio velho onde ela vivia. O mesmo se passou no dia seguinte, e no dia depois ao seguinte. Subíamos sempre mais um degrau à medida que dançávamos aquela valsa, e à medida que subíamos o perfume a amoras e café ficava cada vez mais intenso. Passados precisamente quarenta e seis dias, cheguei ao patamar onde ela vivia. Ela sorria envergonhada, e eu tremia como uma máquina de lavar antiga. Com calcário. Nunca tinha entrado em casa de ninguém. Era a primeira vez que me abriam a porta, e me deixavam entrar sem perguntar o que desejava, porque é que estava ali ou se era de uma associação religiosa. Entrei sem perguntas. Entrei. Tudo era ela ali. Ela deitou-se na cama e eu deitei-me ao lado. Falamos como fazíamos quando ainda não dançávamos. Falamos durante horas. Depois, quando o eco das palavras desapareceu no vazio, eu levantei-me e meti a mão ao bolso e tirei uma chave. Entreguei-a e esperei. Ela não percebeu. Então, mostrei o meu peito com a fechadura ferrugenta e esperei que ela o abrisse. Ela não hesitou em abrir, mas sem forçar, o meu peito. E entrou, entrou, mergulhou em mim como nunca ninguém tinha feito. E eu sorri. Fiquei na cama de peito aberto, como numa cirurgia ao coração. Daquelas que se fazem para reparar as válvulas tricúspides. Essas têm um nome engraçado. As veias e artérias estavam expostas, e eu não me importei que o sangue secasse. Deixei-a viajar no meu corpo, para nunca mais sair. Mas ela quis sair. Saiu porque quis. Ou queria sair sem saber que o estava a fazer. Eu empacotei as veias e artérias dentro do peito, e com as mãos segurei-o. Sentia-a lá dentro. Sentia as mãos dela a furarem a minha pele, a minha carne. Doía. Larguei o peito e ela caiu desamparada nos meus pés, sem saber o que se tinha passado. Dobrei-me sobre ela, peguei-lhe nas mãos e tirei-lhe a chave. Ela acompanhou-me até à porta, e eu disse-lhe que me ia embora. Ela olhou-me nos olhos sem saber o que dizer. Desceu alguns degraus e ficamos a dançar em alguns. Depois vi que era tarde demais para voltar a subir. Era tarde demais até para ficar nos degraus, assim parados. Resolvi ir, sem saber se alguma vez voltaria. Os lábios vermelhos dela dançaram para mim por mais algum tempo. Depois saí para a rua e respirei a brisa seca da manhã, respirei o momento, e fui para casa.

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